Um relatório divulgado recentemente pela Assistência Médica Internacional (AMI) revela um dado alarmante: mais de 60% da população em idade ativa em Portugal solicitou algum tipo de ajuda à instituição nos últimos anos. Este número, que se refere principalmente a pedidos de apoio alimentar e social, reflete uma crise socioeconômica que tem vindo a afetar severamente a classe trabalhadora do país.
Relatório da AMI
Segundo os dados apurados pela AMI, a crise gerada pela pandemia de COVID-19, seguida pelos efeitos inflacionários e o aumento do custo de vida, são alguns dos principais fatores que levaram a um aumento significativo de pedidos de auxílio por parte da população em idade ativa. Esta faixa etária, compreendida entre os 18 e os 65 anos, historicamente menos dependente de instituições de apoio social, viu-se, de forma inédita, a necessitar de ajuda para satisfazer necessidades básicas.
O relatório da AMI, publicado esta semana, destaca ainda que muitos dos pedidos provêm de pessoas com empregos regulares, mas cujo rendimento não é suficiente para cobrir despesas essenciais como alimentação, habitação e cuidados de saúde. Entre os beneficiários deste apoio, um número crescente de trabalhadores precários, freelancers e pequenos empresários, cujas atividades foram drasticamente afetadas nos últimos anos.
Tipos de Apoio Solicitados
O apoio mais solicitado tem sido a ajuda alimentar, com a AMI a distribuir milhares de cabazes de alimentos por todo o país. Contudo, os pedidos não se limitam a esse tipo de auxílio. A AMI tem também fornecido ajuda ao nível do acesso a cuidados de saúde, apoio psicológico e jurídico, e assistência em questões de habitação.
Ana Martins, coordenadora de um dos centros de distribuição da AMI em Lisboa, explica que “a maioria das pessoas que nos procura nunca tinha imaginado que um dia precisaria deste tipo de apoio. Muitos têm empregos, mas os salários que recebem simplesmente não são suficientes para fazer face às despesas básicas.”
Além disso, os centros de apoio da AMI têm notado um aumento nos pedidos de apoio para situações de despejo e inadimplência nos pagamentos de rendas e empréstimos bancários, uma consequência direta da crise imobiliária e dos aumentos sucessivos nas taxas de juro dos créditos à habitação.
Retrato da População Atingida
O perfil das pessoas que recorrem à AMI é variado, mas há características comuns que apontam para uma fragilização da classe trabalhadora. Grande parte dos pedidos vem de famílias monoparentais, indivíduos com contratos de trabalho temporário e trabalhadores a recibos verdes. Esta situação abrange tanto pessoas com baixos níveis de escolaridade quanto profissionais qualificados, o que indica que a crise económica tem atingido transversalmente diferentes estratos sociais.
Um exemplo disso é o caso de Carlos Pereira, um engenheiro civil de 42 anos que, após ter perdido o emprego durante a pandemia, nunca conseguiu recuperar financeiramente. “Cheguei a um ponto em que tive de recorrer à AMI para alimentar a minha família. Nunca pensei que isso aconteceria comigo, depois de tantos anos a trabalhar em empregos estáveis,” relata Carlos, acrescentando que as dificuldades se agravaram com o aumento do custo de vida e os preços elevados dos bens essenciais.
De acordo com o relatório da AMI, a faixa etária mais afetada é a dos 35 aos 50 anos, uma vez que esta população, além de enfrentar despesas com filhos, tem também de lidar com compromissos financeiros como empréstimos à habitação e outras dívidas pessoais.
Efeitos da Crise Económica
O impacto da pandemia foi uma das principais causas da atual situação, mas a recuperação lenta e desigual da economia global, combinada com os efeitos da guerra na Ucrânia, tem agravado ainda mais a situação. A inflação crescente, especialmente nos preços da alimentação e energia, tem deixado muitas famílias sem margem para imprevistos, forçando-as a recorrer a apoios que, em tempos, eram reservados para a população mais carenciada.
A AMI, que há décadas se dedica a apoiar os mais vulneráveis, destaca que a sua missão tem mudado nos últimos anos. Pedro Marques, diretor da organização, afirmou em entrevista: “Estamos a assistir a um novo fenómeno em Portugal. As pessoas que vêm ter connosco hoje são, muitas vezes, as mesmas que antes contribuíam para apoiar os nossos projetos. É uma inversão preocupante que revela a profundidade da crise que estamos a enfrentar.”
Respostas das Autoridades
Em resposta a este cenário alarmante, o governo tem implementado algumas medidas de apoio, como o aumento do salário mínimo e a disponibilização de subsídios para famílias de baixos rendimentos. No entanto, as críticas têm sido muitas, com associações e sindicatos a afirmarem que estas medidas são insuficientes para combater a pobreza crescente entre a população ativa.
A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a União Geral de Trabalhadores (UGT) têm vindo a apelar a um reforço das políticas de apoio social, bem como a uma revisão das leis laborais, de forma a garantir maior estabilidade e proteção para os trabalhadores.
Entretanto, a AMI continua a reforçar os seus serviços, ajustando-se à crescente procura por assistência. Com 15 centros de distribuição de alimentos e serviços de apoio social espalhados pelo país, a instituição enfrenta agora o desafio de garantir que consegue atender a todos os que procuram ajuda, num cenário de crescente necessidade e recursos limitados.
Ação Comunitária e Solidariedade
Apesar da gravidade da situação, têm surgido várias iniciativas de solidariedade por parte da sociedade civil, que procura ajudar as famílias mais afetadas. Organizações não-governamentais, empresas privadas e cidadãos comuns têm-se mobilizado para fornecer apoio adicional, através de doações de alimentos, roupas e recursos financeiros para as pessoas em maior dificuldade.
Pedro Marques, da AMI, sublinha que “o papel da sociedade civil tem sido fundamental para conseguirmos dar resposta a esta crise. Embora o cenário seja grave, o espírito de solidariedade dos portugueses tem feito a diferença para muitas famílias.”