Nos últimos meses, uma investigação revelou que munições indianas foram utilizadas pelas forças ucranianas no conflito contra a Rússia, levantando questionamentos sobre o impacto dessa situação nas relações entre Nova Deli e Moscou, aliados de longa data. O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que tem se posicionado como um potencial mediador de paz no conflito, agora enfrenta uma crise diplomática, com o Kremlin a demonstrar descontentamento.
De acordo com a agência de notícias Reuters, munições fabricadas na Índia e adquiridas por países terceiros, como Itália e República Tcheca, foram repassadas para a Ucrânia. O fato chamou atenção após imagens de combates em solo ucraniano exibirem munições identificadas como sendo de fabricação indiana. O governo indiano, no entanto, se mostrou evasivo sobre as alegações.
O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia, Randhir Jaiswal, classificou os relatos de que munições indianas estavam sendo usadas no conflito como “especulativos e maliciosos”, e negou que a Índia tenha violado qualquer regra internacional de venda de armamentos. No entanto, Jaiswal não negou categoricamente a presença de munições indianas no arsenal ucraniano, levantando dúvidas sobre a capacidade de Nova Deli de controlar o destino final de suas armas.
A Rússia, por sua vez, expressou ceticismo. Um alto funcionário russo, que preferiu manter o anonimato, afirmou à Al Jazeera que há “provas contundentes” de que as forças ucranianas estão utilizando munições indianas. “Existem até fotografias que confirmam isso”, disse o oficial. Ele mencionou ainda que os contratos de venda de armas geralmente incluem acordos de usuário final, que determinam que o país vendedor siga de perto o uso final de seus produtos. “Queremos ver as provas de que a Índia pressionou Itália ou República Tcheca para evitar que essas munições fossem parar na Ucrânia”, acrescentou o oficial.
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Nos últimos anos, a Índia tem tentado expandir sua indústria de defesa, tradicionalmente conhecida como um dos maiores importadores de armamentos do mundo. Entre 2018 e 2023, o país exportou cerca de 3 bilhões de dólares em armas. A guerra na Ucrânia parece ter dado um impulso significativo à indústria de defesa indiana. Exportações de empresas indianas para países como Itália e República Tcheca cresceram de 2,8 milhões de dólares para 135,24 milhões entre 2022 e 2024.
Segundo especialistas, no entanto, à medida que a Índia aumenta suas exportações de armas, terá de enfrentar a realidade de que compradores nem sempre utilizam as armas da forma que o exportador gostaria. Como explicou Christopher Clary, professor assistente de ciência política na Universidade de Albany, “à medida que a Índia começa a exportar mais armas globalmente, vai lidar com a desagradável realidade de que importadores de armas nem sempre seguem as restrições impostas originalmente pelo exportador”.
As relações entre a Índia e a Rússia remontam à época da Guerra Fria, com Moscou sendo o principal fornecedor de armamentos para Nova Deli nas últimas décadas. Estima-se que dois terços das compras de armas indianas nos últimos 20 anos tenham vindo da Rússia. Essa longa aliança tem sido crucial para ambos os países, especialmente em tempos de crises regionais e globais.
No entanto, a descoberta de munições indianas no campo de batalha ucraniano pode gerar tensões. Embora o volume de munições indianas utilizadas pela Ucrânia seja considerado modesto — representando cerca de 1% das necessidades de armamentos ucranianas, segundo analistas — o impacto simbólico pode ser maior.
Logo após retornar de uma visita a Kiev, em agosto deste ano, Modi fez questão de atualizar o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sobre sua conversa com Volodymyr Zelenskyy. No entanto, Modi não fez o mesmo em relação a Vladimir Putin, que acabou tomando a iniciativa de contatar o líder indiano. Dias depois, Modi enviou seu conselheiro de segurança nacional, Ajit Doval, a Moscou para tranquilizar Putin sobre os desdobramentos. Imagens vazadas pelo Kremlin mostraram Doval tentando convencer um visivelmente desconfiado Putin sobre os méritos da visita de Modi à Ucrânia, o que sinalizou uma crescente tensão entre os dois países.
Internamente, a oposição indiana, liderada pelo partido Congresso, criticou Modi por, supostamente, ceder à pressão dos Estados Unidos para romper os laços tradicionais com a Rússia. “O primeiro-ministro indiano foi forçado a viajar de trem blindado para Kiev por pressão dos EUA, que quer que a Índia rompa seus laços com a Rússia”, afirmou Rashid Alvi, líder do Congresso, à Al Jazeera.
Ao mesmo tempo, a comunidade internacional, incluindo especialistas e políticos, questiona até que ponto a Índia pode se manter neutra na tentativa de mediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia. A forte relação histórica da Índia com a Rússia levanta dúvidas sobre sua imparcialidade no conflito, o que pode prejudicar a credibilidade de Modi como mediador.
Com munições indianas sendo encontradas no campo de batalha ucraniano e com o agravamento do conflito, a Índia enfrenta uma situação delicada em suas relações diplomáticas. Ao mesmo tempo em que tenta expandir sua indústria de defesa e se posicionar como um intermediário global, Modi terá de equilibrar a pressão internacional, especialmente de aliados tradicionais como a Rússia, com a necessidade de atender às demandas geopolíticas em um cenário global cada vez mais polarizado.